“MEDIUNISMO” - EVOLUÇÃO SEMÂNTICA - Jornal Abertura 2019

Allan Kardec inicia O Livro dos Espíritos lembrando que a clareza da linguagem é necessária para evitar confusões decorrentes da polissemia. Todavia, mesmo com o desenvolvimento do Espiritismo, ocorreu que o dinamismo das linguagens e a notória profusão de pesquisadores da fenomenologia espiritual sem a convergência de uma instituição central amiúde impediu a uniformidade terminológica desejável. Exemplo disso encontra-se na evolução semântica do vocábulo “mediunismo”.

Somente após Kardec, em 1873, localiza-se seu primeiro uso num opúsculo (1) de H. Gonzague, para quem o mediunismo seria sinônimo de “Magnetismo espírita”, uma combinação de Magnetismo Animal com Espiritismo para fins terapêuticos.

Em 1879, encontra-se referência a “mediunismo” como sinônimo de mediunidade na tradução(2) para o francês de relatório de 1875 de comissão da Universidade de São Petersburgo (Rússia) formada para a análise de fatos mediúnicos, quando se fez presente Alexander Aksakof, diplomata e conselheiro do czar. Em 1890, Aksakof(3) utiliza o vocábulo “mediumismus” como sendo “todos os fenômenos compreendidos no animismo e no espiritismo, independentemente de uma ou de outra dessas hipóteses”. Almejava ele um termo genérico, sem hipóteses ou doutrinas, de forma a iniciar uma nova análise das causas e mecanismos dos fenômenos que estudava. Em 1899, Gustave Geley(4) afirma equivocadamente que o objetivo de Aksakof era tratar tão-somente dos fenômenos espíritas (mediúnicos), o que restringia o conceito anterior. Depois, encontra-se diversas menções ao vocábulo (v.g. Richet, Bozzano etc) sem preocupação conceituativa, mas retomando a abrangência fenomenológica pretendida por Aksakof, como o faz também o espírito conhecido como Emmanuel, através do médium Chico Xavier (5), em 1937.

Em 1941, Ernesto Bozzano, sem referência ao termo, faz a primeira incursão entre os “Povos Primitivos e Manifestações Supranormais”, visando a investigar os fatos naturais que constituíram as bases das religiões, em obra precursora da Antropologia Espírita. Em 1947, Deolindo Amorim lança Africanismo e Espiritismo, onde, tentando afastar o Espiritismo da ideia de fetichismo, afirma que “há mediunismo nos cultos africanos”, aparentemente tratando apenas de fenômenos mediúnicos.

Em 1962, nota-se no grande Herculano Pires (6) a mesma preocupação em esclarecer que o Espiritismo não se confundia com os fenômenos mediúnicos (mediunismo) em si, sendo, na verdade, a disciplina que se debruça sobre estes. Mas é em 1964 que Herculano(7), influenciado por Bozzano e, talvez, Amorim, promove verdadeira reviravolta no conceito, atribuindo-lhe os seguintes contornos: trata-se de fenômenos mediúnicos em sua expressão natural, primitiva e empírica, como se registrou desde os primórdios da humanidade, sem a compreensão positiva de sua natureza e significado, sendo esta a concepção que prevalece atualmente entre os espíritas.

Embora tal distinção seja simplista e contenha preconceito – já que médiuns não espíritas também podem aprender sobre o problema mediúnico por outras formas de conhecimento e suas próprias experiências, tem-se que esse conceito é útil para apresentar o Espiritismo como a proposta mais completa a acolher e fornecer diversos dados racionais para a conscientização e prática dessa admirável faculdade voltando-a para o desenvolvimento das potencialidades humanas.

Para Carlos Bernardo Loureiro(8), que pesquisou os cultos de matriz africana e acolheu médiuns de diversas origens, o mediunismo é como “o chão agreste e rico, de cujas escavações milenares foram extraídos os minérios preciosos da mediunidade. Nas várias formas do sincretismo religioso afro-brasileiro, a mediunidade eclode, muitas vezes, como tufos de vegetais promissores, rompendo o chão áspero dos terreiros. Não encontrando ambiente favorável no meio sincrético, essas mediunidades surpreendentes vão transplantar-se para o ambiente espírita e, ali, florescer e frutificar. Não podemos condenar o mediunismo, pois isso seria condenar a fonte que nos fornece água. Há ricos filões de fenômenos, no solo fecundo do mediunismo, à espera dos investigadores espíritas”.

Cabe ao Espiritismo, em seu trabalho de desmistificação e caridade, promover a releitura de todos os fatos naturais espirituais, inclusive o percurso do mediunismo até a mediunidade, sob os métodos e a linguagem racionalistas da Ciência e da Filosofia. Em outras palavras: traduzir o Espírito para seu desenvolvimento e compreensão pelo Homem contemporâneo.

Biografia:

Méthode de Traitement de Tous Les Genres de Maladies par le Médiumnisme ou Magnétisme Spirite

  1. Mesmer, Le Magnétisme Animal, Les Tables Tournantes et Le Spritisme,
  2. Ernest Bersot, 4a. edição
  3. Animismus und Spiritismus – Alexander Aksakof – ed. alemã
  4. O Ser Subconsciente – Gustave Geley – 1899 – ed. FEB
  5. Emmanuel, Francisco Cândido Xavier (psicografia) – Espírito Emmanuel – 1937 – ed. FEB
  6. Os 3 Caminhos de Hécate – J. Herculano Pires – 1962 – ed. Edicel
  7. O Espírito e o Tempo, Introdução Antropológica ao Espiritismo – J. Herculano Pires – 1964 – ed. Edicel
  8. Enciclopédia Temática dos Mistérios e das Ciências – Carlos Bernardo Loureiro - inédita

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