Allan Kardec inicia O Livro dos Espíritos lembrando que a clareza da linguagem é necessária para evitar confusões decorrentes da polissemia. Todavia, mesmo com o desenvolvimento do Espiritismo, ocorreu que o dinamismo das linguagens e a notória profusão de pesquisadores da fenomenologia espiritual sem a convergência de uma instituição central amiúde impediu a uniformidade terminológica desejável. Exemplo disso encontra-se na evolução semântica do vocábulo “mediunismo”.
Somente após Kardec, em 1873, localiza-se seu primeiro uso num opúsculo (1) de H. Gonzague, para quem o mediunismo seria sinônimo de “Magnetismo espírita”, uma combinação de Magnetismo Animal com Espiritismo para fins terapêuticos.
Em 1879, encontra-se referência a “mediunismo” como sinônimo de mediunidade na tradução(2) para o francês de relatório de 1875 de comissão da Universidade de São Petersburgo (Rússia) formada para a análise de fatos mediúnicos, quando se fez presente Alexander Aksakof, diplomata e conselheiro do czar. Em 1890, Aksakof(3) utiliza o vocábulo “mediumismus” como sendo “todos os fenômenos compreendidos no animismo e no espiritismo, independentemente de uma ou de outra dessas hipóteses”. Almejava ele um termo genérico, sem hipóteses ou doutrinas, de forma a iniciar uma nova análise das causas e mecanismos dos fenômenos que estudava. Em 1899, Gustave Geley(4) afirma equivocadamente que o objetivo de Aksakof era tratar tão-somente dos fenômenos espíritas (mediúnicos), o que restringia o conceito anterior. Depois, encontra-se diversas menções ao vocábulo (v.g. Richet, Bozzano etc) sem preocupação conceituativa, mas retomando a abrangência fenomenológica pretendida por Aksakof, como o faz também o espírito conhecido como Emmanuel, através do médium Chico Xavier (5), em 1937.
Em 1941, Ernesto Bozzano, sem referência ao termo, faz a primeira incursão entre os “Povos Primitivos e Manifestações Supranormais”, visando a investigar os fatos naturais que constituíram as bases das religiões, em obra precursora da Antropologia Espírita. Em 1947, Deolindo Amorim lança Africanismo e Espiritismo, onde, tentando afastar o Espiritismo da ideia de fetichismo, afirma que “há mediunismo nos cultos africanos”, aparentemente tratando apenas de fenômenos mediúnicos.
Em 1962, nota-se no grande Herculano Pires (6) a mesma preocupação em esclarecer que o Espiritismo não se confundia com os fenômenos mediúnicos (mediunismo) em si, sendo, na verdade, a disciplina que se debruça sobre estes. Mas é em 1964 que Herculano(7), influenciado por Bozzano e, talvez, Amorim, promove verdadeira reviravolta no conceito, atribuindo-lhe os seguintes contornos: trata-se de fenômenos mediúnicos em sua expressão natural, primitiva e empírica, como se registrou desde os primórdios da humanidade, sem a compreensão positiva de sua natureza e significado, sendo esta a concepção que prevalece atualmente entre os espíritas.
Embora tal distinção seja simplista e contenha preconceito – já que médiuns não espíritas também podem aprender sobre o problema mediúnico por outras formas de conhecimento e suas próprias experiências, tem-se que esse conceito é útil para apresentar o Espiritismo como a proposta mais completa a acolher e fornecer diversos dados racionais para a conscientização e prática dessa admirável faculdade voltando-a para o desenvolvimento das potencialidades humanas.
Para Carlos Bernardo Loureiro(8), que pesquisou os cultos de matriz africana e acolheu médiuns de diversas origens, o mediunismo é como “o chão agreste e rico, de cujas escavações milenares foram extraídos os minérios preciosos da mediunidade. Nas várias formas do sincretismo religioso afro-brasileiro, a mediunidade eclode, muitas vezes, como tufos de vegetais promissores, rompendo o chão áspero dos terreiros. Não encontrando ambiente favorável no meio sincrético, essas mediunidades surpreendentes vão transplantar-se para o ambiente espírita e, ali, florescer e frutificar. Não podemos condenar o mediunismo, pois isso seria condenar a fonte que nos fornece água. Há ricos filões de fenômenos, no solo fecundo do mediunismo, à espera dos investigadores espíritas”.
Cabe ao Espiritismo, em seu trabalho de desmistificação e caridade, promover a releitura de todos os fatos naturais espirituais, inclusive o percurso do mediunismo até a mediunidade, sob os métodos e a linguagem racionalistas da Ciência e da Filosofia. Em outras palavras: traduzir o Espírito para seu desenvolvimento e compreensão pelo Homem contemporâneo.
Biografia:
Méthode de Traitement de Tous Les Genres de Maladies par le Médiumnisme ou Magnétisme Spirite
- Mesmer, Le Magnétisme Animal, Les Tables Tournantes et Le Spritisme,
- Ernest Bersot, 4a. edição
- Animismus und Spiritismus – Alexander Aksakof – ed. alemã
- O Ser Subconsciente – Gustave Geley – 1899 – ed. FEB
- Emmanuel, Francisco Cândido Xavier (psicografia) – Espírito Emmanuel – 1937 – ed. FEB
- Os 3 Caminhos de Hécate – J. Herculano Pires – 1962 – ed. Edicel
- O Espírito e o Tempo, Introdução Antropológica ao Espiritismo – J. Herculano Pires – 1964 – ed. Edicel
- Enciclopédia Temática dos Mistérios e das Ciências – Carlos Bernardo Loureiro - inédita