Quando observamos o estudo sob o prisma espírita da cultura espiritualista/religiosa que se formou no Brasil ao longo de sua história, nota-se uma lacuna no que diz respeito aos saberes de matriz africana. Existe uma considerável produção no que diz respeito às manifestações mediúnicas e aos saberes espirituais oriundos das tradições ocidentais, notadamente cristãs. Tal produção, em que pese o olhar exacerbadamente religioso muitas vezes, faz-se louvável no sentido de lançar análise espírita sobre importantes alicerces de nossa formação e de nossa história.
Todavia, não se percebe o mesmo interesse sobre os demais troncos culturais de nossa formação civilizatória. Mesmo o livro de 1947 ‘Africanismo e Espiritismo’, da autoria do mestre Deolindo Amorim, é mais orientado a dizer o que nos saberes de matriz africana se distancia das práticas espíritas. Sabe-se que a transformação, do Espiritismo no Brasil, em grande medida, em mais uma denominação religiosa cristã é primordial para explicar essa situação. Mas não se pode descartar o racismo que, quase sempre disfarçado, paira em nosso país todo o tempo. Faz-se um ótimo exercício aos espíritas, debruçar-se, tal qual fez Deolindo, aos estudos sociológicos sobre os saberes de matriz africana. Mas, para dessa vez, produzirmos nossas próprias análises e olhares, verificando quanto daquelas práticas podem ser analisadas pelo prisma espírita, de modo a dissolver preconceitos valorizando tão importante e tão maltratada parte de nossa formação, de nossa cultura.
O primeiro aspecto que salta aos olhos é o desconhecimento sobre as dimensões do continente africano. Estamos falando do continente com a segunda maior população entre os continentes, com uma diversidade cultural praticamente incatalogável de tão plural, sob qualquer critério que se utilize, além do continente com o maior número de estados nacionais (54 países! E mais dois territórios buscando independência. Vale destacar que a maioria dessas fronteiras foram estabelecidas por decreto, pela Conferência de Berlim, de 1885, confinando, em muitos casos, dezenas de nações, sem nenhuma similaridade cultural ou linguística ao mesmo país. Sendo o ponto de partida para terríveis conflitos que duram até hoje). Quando falamos de ‘matriz africana’ para nos referirmos às populações que foram trazidas à força para o Brasil, estamos, portanto, falando de uma fração muito pequena desse universo. Aproximadamente uma dúzia de nações. E na influência das tradições religiosas mais difundidas, 3 povos de destacam. Jejes, fês e Iorubás. Este último no auge de sua influência no golfo da Guiné quando trazido para o Brasil.
Para uma aproximação do assunto, recomenda-se a leitura do trabalho de Pierre Verger (Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo), além das dissertações de Roland Hallgren (The Good things in life – An Study of tradicional Religious Culture of the Yoruba People), de Renato da Silveira (Iyá Nassô Oká, Baba Axipã e Bamboxê Okitikô – Uma Narrativa sobre a fundação do candomblé da Barroquinha) e de Antônio Risério (Uma História da Cidade da Bahia).
No século XVI, foi trazida a primeira onda de pessoas dos reinos do Nkongo e do Ngola. Partes das atuais Angola e República Democrática do Congo. São desses povos as primeiras e mais longínquas tradições, vocabulários e práticas sugestivas de evocações mediúnicas. Mas a explosão do tráfico de escravos acontece do final do século XVIII até a metade do século XIX. É desse período que um contingente imenso de pessoas serão trazidas predominantemente dos povos do tronco Jeje (os povos fon, ewe, mina, fanti e axântis), e do tronco Nago (notadamente, o povo Iorubá), além do povo Haussá (também chamados de Malês). Todos esses povos habitavam a região atualmente do golfo da Guiné, nos atuais territórios do Gana, Togo, Benin, Nigéria e Camarões.
A primeira coisa que se destaca entre esses povos é o seu modo bastante distinto, em relação aos europeus, de conceber o mundo, os espíritos, a vida e o sentido da existência. Qualquer esforço para se estudar os saberes espirituais Jeje e Iorubá precisa levar esse paradigma em conta. A maior parte dos equívocos cometidos na análise das religiões africanas (inclusive por Deolindo Amorim) parte de uma leitura tomando o conceito cristão de religião como ponto de partida.
A maior parte de seus saberes espirituais dispensa um corpo doutrinário sistemático. São saberes que são transmitidos pela oralidade e profundamente vinculados à terra onde a prática religiosa ocorre. Enquanto os cristãos tinham catequeses, concílios e guerras sem fim para saber quem interpretava corretamente a bíblia e faziam recorrentemente referências à Jerusalém, Galileia e outras terras que nenhum deles nunca tinha posto os pés, os Jejes e Iorubás adaptavam o meio físico e cultural onde estavam inseridos ao seu modo, recorrendo às referências ancestrais e reinterpretando-as para ler o novo mundo. Muito do chamado sincretismo deriva dessa característica.
Outro ponto importante é a relação com a natureza. Os Jejes e os Iorubás concebiam o homem como um elo da teia da vida, dependente da natureza e integrado a ela. A percepção bíblica de que Deus teria criado o homem como “senhor da natureza” não fazia nenhum sentido nessa percepção de mundo em que tudo o que é vivo tem responsabilidade e relações com os demais seres da natureza. Muitos dos argumentos do moderno movimento ambientalista poderiam ter vindos do golfo da guiné do século XIX!
Um aspecto que não pode ser deixado de lado é a percepção dos Jejes e dos Iorubás em relação à vida e seu propósito. Seus saberes espirituais são, sobretudo, imanentes. Isso quer dizer que o sentido da vida e a razão de existir não está no mundo espiritual nem no que será de nossas almas quando morrermos. O sentido da vida está no aqui e no agora. Jejes e Iorubás acreditavam na vida após a morte, mas essa não era uma de suas maiores preocupações. As orações, as evocações e os rituais eram, principalmente, para lidar com os problemas da vida rotineira (uma boa colheita, sucesso na guerra, uma gestação tranquila).
Como consequência direta dessa percepção do sentido da vida está a relação com os prazeres da matéria. Completamente diferente do cristianismo que entendia esses prazeres como impuros, pecaminosos, que nos afastam de Deus, Jejes e Iorubás entendiam como absolutamente sagrados a comida, a bebida, o fumo, a dança, o sexo, a alegria. No cristianismo, a Terra era o “vale de lágrimas”, em contraponto ao “reino dos céus”. Para os Jejes e os Iorubás, a Terra é tão maravilhosa que até os Deuses se manifestam nos rituais para confraternizar dos prazeres dos mortais!
Muito ainda precisa ser aprofundado e estudado em relação a esses saberes e como suas contribuições moldaram a cultura e a relação com a espiritualidade no Brasil. Mas, para além disso, as práticas anímico-mediúnicas nas tendas, terreiros e candomblés são totalmente desconhecidas dos estudos espíritas. Como o método espírita pode estudar esse rico objeto? Não deveríamos nós, os espíritas brasileiros seguir os passos de gente como Leon Denis que, em seu tempo, dedicou-se à compreensão dos saberes espirituais célticos e medievais, formadores da cultura de seu país sob o prisma espírita? É um campo que ainda espera estudiosos espíritas pra desbravar.
Rodrigo Almeida
Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em Urbanismo pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Especialista em Geotecnologias e Geoinformação. É analista técnico do Ministério Público do Estado da Bahia. Atualmente trabalha no do Instituto da Mediunidade Yvone Pereira, em Salvador-BA. É delegado da Associação Espírita Internacional - CEPA.