Márcia, amiga querida. Ante sua viagem fora do combinado ao ladodelá, desdecá lhe envio este quase poema de lembranças, cadente como aquela estrela que risca o céu aos primeiros raios de sol.
Ainda guardo no peito a pressão do susto gerado pelas suas palavras lá, naquela tarde de sábado no CPDoc. Vejo seu olhar quando, fixando-me, segurava pequenos soluços e escondia furtivas lágrimas a lhe escorrer nas maçãs da face. Ao falar de Doca, você me surpreendeu, me tirou do lugar da apreensão e me transportou para a outra margem da estrada, como se usasse suas mãos macias num afago de plumas a acomodar assim, ternamente, o susto que não deveria ter nascido em mim naquele instante.
Sabe, amiga, a apreensão, a inquietação, essas coisas que nos assaltam quando nos colocamos diante do abismo que infantilmente criamos, estavam ali, ambas, ao derredor de minh’alma. Sem saber disso, você desenrolou um pergaminho de considerações afetuosas para dizer de minha Doca as coisas que um espírito deveras sensível recolhe, dobra e guarda com carinho na gaveta da esperança. Depois? Depois, na hora certa, põe como relevo macio e forte, em sons suaves de melodia terna, para que todos sorvam a seu modo e sorriam pelo modo seu.
As suas lágrimas eram recuerdos de um tempo sem distância porque presente na memória das experiências do ser que é. Doca tocou-lhe de um modo tão dela, que provocou a abertura das pétalas da flor que você guardou como mimo e estava lá, no seu íntimo. Você sabia, só você. Mas quando deixou fluir ao impulso da emoção aquelas vivências, abriu-se, expôs-se, pois já não era mais preciso manter guardadas as lembranças de um tempo distante e inteiramente seu.
Saiba, amiga, que ali, mirando-lhe e ouvindo-lhe, descobri que Doca era um pouco sua. Foi então que desvaneceu em mim a presunção egoísta de achar que Doca era minha criação, totalmente minha, dominadamente. Você tinha uma parte de Doca tal que era suficiente para me dizer com a franqueza do inopino que Doca nunca me pertenceu com exclusividade, pois nascera na verdade de todos os que no mundo se incomodam com a miséria e a fome, a dor e o choro. Eu era e fui apenas o médium de Doca, simples assim.
Naquela tarde de sábado, em meio aos ruídos e vozes misturados de fraternos sentimentos, eu perdi parte de Doca, mas ganhei você. Hoje, vendo-a nas dobras da linha do horizonte que nos separa do mundo dos invisíveis, quero-lhe fazer essa confissão. Depois daquele dia, Doca passa de vez em quando em minha casa. Já não aparece mais com aquela frequência e o semblante sério e um tanto sisudo, é verdade, mas vem apenas quando vê que precisa afagar o menino tolinho. No entanto, você entrou pelas portas abertas de minh’alma naquele sábado mesmo, de modo tão suave, tão cálido e definitivo que supriu a parte de Doca que eu já não tenho mais.
Resta-me acenar-lhe daqui deste ladodecá da matéria e sorrir na esperança de vê-la caminhando em frente, segura, confiante. Não se esqueça de nos avisar quando de uma futura visita, para que todos nós do CPDoc possamos colocar a toalha branca de linho na mesa da sala e enchê-la de guloseimas em meio às flores que cada um de nós retirará do jardim das emoções. Somos todos sorrisos, lágrimas e, desde já, saudades, muitas saudades.
Por Wilson Garcia
São Paulo, SP