Em 2016 fui a Cuba participar de um congresso acadêmico. Em visita a antiquários de Havana, me deparei com cartazes à venda. Um deles estampava inusitado quadro político, com Jesus portando um rifle em seu ombro, fato que me levou a adquiri-lo imediatamente (tela à esquerda, de Alfredo González Rostgaard, 1969). Não por eu concordar com ou defender a imagem que o cartaz trazia de Jesus, qual seja, a de um Jesus guerrilheiro comunista, mas sim pelo insólito da situação e o meu interesse sociológico no tema. Afinal, a cruz em que Jesus foi morto e torturado é insígnia que vem servindo de maneira contraditória como justificativa para a existência de exércitos e Estados guerreiros, arautos da defesa da riqueza e da opulência terrenas, quando não do extermínio mútuo. Já um Jesus vivo, com a feição humana, sóbria e determinada, como que equipado para a revolução terrena, embora esta última caracterização também possa ser considerada fantasiosa, é raridade entre suas representações. Pois desde que Roma decidiu pelo advento oficial do cristianismo como religião de Estado, Jesus passou a sinalizar a bênção à salvaguarda da(s) ordem(ns) estabelecida(s). Algo que, se interpretado à luz de suas ações misericordiosas, de seu rechaço às jogatinas políticas, à tradição morta dos ritualismos, às suntuosidades e suas lições sobre o amor universal, não tem a menor razão de ser.
Nos últimos tempos, no entanto, algumas interpretações do Evangelho de Jesus têm sublinhado seu caráter social, seu amor pelos pobres, humilhados e deserdados de toda a sorte, o que o aproximaria, em tese, às correntes socialistas e até mesmo comunistas dos séculos XIX e XX. Partindo da Teologia da Libertação nos anos 1960-70 vimos, no espiritismo daquela época, grupamento de teor político semelhante, corporificado no Movimento Universitário Espírita, o MUE. Na atualidade, são notórios os surgimentos de alguns evangélicos à esquerda do espectro político, como o pastor Henrique Vieira, assim como os denominados Espíritas Progressistas. Destarte, uma miríade de personagens que contestam a imagem predominante das religiões cristãs junto a muitos movimentos sociais de esquerda, qual seja, a de “ópio do povo”, na célebre definição de Karl Marx – instituições voltadas a legitimar de maneira teológica a existência das classes dominantes e seus interesses – disputam a feição que as denominações ou doutrinas elaborarão de Jesus. No entanto, por mais que seja muito bem-vinda, a meu ver, a existência de tais correntes politicamente progressistas que intentam modificar a apropriação usual da figura de Jesus, acho por bem frisar alguns pontos. De um lado, o cristianismo pode correr o risco de ser subsumido a razões estritamente materiais e políticas de época. De outro, se nada for feito, também há a possibilidade de permanecer como quase sempre foi, ou seja, esteio ou máscara de hipócritas, egoístas, vigaristas, sedentos pelo poder e estelionatários da fé, triste espetáculo a que os séculos dos séculos assistem. Nenhuma dessas soluções faz jus seja à figura histórica de Jesus, seja à profundidade e ao conteúdo de sua pregação. E nenhum movimento político destituído de qualquer ideia de transcendência, por sua vez, logrou edificar uma utopia que fosse digna desse nome. Examinemos essa relação mais de perto.
De início, não seria um exagero afirmarmos que a história do cristianismo pode se resumir à caricatura que cada corrente religiosa buscou esboçar de Jesus. E devemos concordar que, até hoje, nenhuma conseguiu expressar uma figura sequer razoável nem dele nem de sua missão. Isto porque Jesus geralmente foi pintado à nossa imagem e semelhança, além de o termos moldado de acordo com nossos interesses imediatos; são raros os que se esforçaram para chegar perto do que ele foi, o que exige profunda e severa transformação de si mesmo e, no caso das instituições que se dizem cristãs, os imprescindíveis “dar tudo aos pobres” e “a César o que é de César”. Assim também sucede com diversas correntes políticas de todas as eras: as que intentavam fazer de Jesus um justificador de suas próprias ações, de seus próprios objetivos, no geral, primavam pela conservação do status quo. Nenhuma forma estatal adequou-se de modo coerente ao que Jesus realmente representou. Pois, como bem explicitou Max Weber, um Estado que de fato fosse cristão teria que renunciar à sua própria condição de Estado, quer dizer, teria que se autoliquidar. A impossibilidade de se manter a coerência de sua justificativa última, qual seja, o monopólio legítimo da violência, e ter como divisa substantiva o “se alguém te der um tapa em uma face, apresente-lhe a outra” torna-se patente. Por isso, Jesus, que sabiamente tinha conhecimento das artimanhas intrínsecas à política muito antes de Max Weber, disse: “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
Já do lado dos rebeldes e subversivos que sonhavam com uma nova ordem, com a revolução, com o fim da injustiça, da desigualdade e da exploração de todos os tempos, a maior parte deles se postou do lado contrário à religião institucionalizada. Esta, açambarcada desde sempre na história das civilizações pelas razões de Estado, pela crescente burocratização e pelos potentados de época, teve seus ícones, templos e ritos amiúde destroçados pelos revolucionários, desde os partícipes da Revolução Francesa até os soviéticos, com raras exceções. O que se convencionou chamar de esquerda, sobretudo após o advento da modernidade, visava a se vincular aos saberes científicos, à filosofia laica, aos valores provenientes do Iluminismo, que em uma de suas versões predominantes era anticlerical e antirreligioso. A exitosa teoria de Karl Marx, nesse sentido, forneceu o mote a diversos movimentos e tentativas de derrubada do poder a partir dos séculos XIX e XX. Como já mencionado, a religião e toda a sua simbologia eram vistas como instrumentos dos opressores, que a empregavam visando a produzir a alienação humana, segundo Ludwig Feurbach, filósofo hegeliano em que Marx muito se apoiou. Assim, uma espécie de tradição da esquerda mundial acabou se cristalizando majoritariamente no materialismo ateu, infenso a toda e qualquer ideia de espiritualidade, sagrado, fé, louvor etc.
Também, pudera. O Deus cristão que conhecemos é identificado como o Deus dos fariseus, dos imperialistas romanos, de monarcas genocidas europeus e presidentes estadunidenses, entusiastas das infindáveis guerras dos séculos XX e XXI, dos bilionários, de facínoras como Francisco Franco, Pinochet, Trump, Bolsonaro etc., todos revestidos com o verniz religioso no intento de disfarçarem suas crueldades. Tais pessoas atuam e atuaram em suas vidas contra o advento de um futuro espiritualizado, fraterno, pacífico, ausente de carências de qualquer espécie, isento de competição de egos os mais variados – pessoais, nacionais, regionais, sexuais, raciais, políticos, econômicos etc. Aquele que expulsou os vendilhões do templo, que amiúde desmascarava a hipocrisia e o compromisso temporal dos fariseus, que preferia a companhia dos mendigos, das prostitutas, dos miseráveis, de todos os que sofrem os preconceitos e misérias desta vida, ou seja, os “bem aventurados” do Sermão da Montanha, afinal, nada tinha a ver com sua apropriação póstera. Recordando ainda que o papel de muitos religiosos, ao longo da história, foi antagônico ao de dirimir as misérias materiais e morais, as divisões, as mortes desnecessárias, moldando com suas próprias mãos manchadas de sangue, poder e dinheiro o inferno na Terra. Um mundo cujos princípios morais fossem os de Jesus jamais poderia ter se organizado política e socialmente nos moldes em que veio se gestando, incluindo os nossos dias.
O horror está em toda parte, e tanto o morticínio da Primeira Guerra, o nazifascismo, a Albânia, o Vietnã, a Palestina, a África, a América Latina e a Ásia atuais, quanto a violência cotidiana de nossas cidades e periferias, que se espalha por todo canto do mundo, infelizmente não configuram exceção, mas a regra da sociedade capitalista, seja esta de mercado ou de Estado. Haja vista seus valores hipostasiarem-se no cálculo, no acúmulo, na distinção, na indiferença, na frieza burocrática, no individualismo, na sensualidade reificada, nas guerras, na competição, no materialismo, nas mercadorias, na crueldade, na imbecilidade cultural, na ignorância, na xenofobia, nas divisões nacionais, regionais, raciais, sexuais etc. Apresentada falsamente como uma situação eterna, anistórica, uma segunda natureza a que estaríamos fadados a jamais transpor, “fim da história” em que vigeriam o mérito, a liberdade, a iniciativa pessoal, a distribuição de riquezas, a democracia e o melhoramento progressivo, tal sociedade em sua face real é capaz de chegar à Lua e deixar à própria sorte, sem esgoto, água, saúde, educação e alimentação digna cerca de dois terços dos seres humanos. Uma sociedade verdadeiramente cristã, fraterna, em que o amor ao próximo sobrepuje o amor às riquezas, às posses, ao lucro, à mercadoria, ao domínio do homem pelo homem, ao orgulho racial, nacional e ao poder em geral jamais poderá existir enquanto existir o capitalismo.
Tendo tais pressupostos em vista, como poderíamos refletir sobre a existência de uma utopia cristã neste mundo? Ela seria de esquerda ou de direita? Seria subversiva ou reacionária? Ela sempre estaria fadada ao fracasso, como todas as utopias que vimos ser instauradas ao longo do século XX, sobretudo? Como poderíamos imaginar um Estado verdadeiramente cristão em nossos dias? Teríamos que liquidar a própria ideia de Estado nacional, seguindo a lógica de Max Weber? E Jesus? Qual o seu verdadeiro papel no possível advento de um mundo melhor do que o nosso? O de um subversivo? O de um conservador? Pois, afinal, para que um mundo melhor do que este em que nos encontramos emerja, é necessário que ele, este nosso mundo, seja inequivocamente superado. E, para superá-lo, decerto há a exigência de uma subversão das atuais ordens materiais e culturais. Porém, uma simples subversão destituída de valores basais, como, por exemplo, o amor universal despido de uma ideia de transcendência, seria capaz de erguer uma nova sociedade de fato, ou não seria nada mais do que uma farsa, o mesmo velho andrajoso em uma roupa nova e modificada? Em outras palavras, a divisa “amar ao próximo como a si mesmo” sem uma justificativa pautada em valores transcendentais universais, apenas materializada, seria capaz de se tornar o norte a guiar a humanidade?
São muitas as questões e muito complexas as possíveis respostas. Esperamos desenvolvê-las com mais detalhes em outros textos. Por ora, notemos que, em um primeiro momento, a história nos mostra que experiências pautadas em utopias comunitárias puramente materialistas redundaram em Gulags e em ordens sociais tão ruins ou até piores do que o capitalismo de mercado. Por outro lado, o desejo verdadeiro de mudança, justiça, igualdade e liberdade concretas, geralmente esposado pela esquerda, é algo mais do que necessário em nossos dias. A esquerda de hoje, no entanto, após o fracasso das utopias do século XX as deixou de lado, aferrando-se às defesas pontuais da existência de diferenças, sejam estas raciais, de gênero etc., e do direito substantivo das minorias. Acomodou-se, assim, relativamente bem ao mundo do capital e à sua face político-institucional – a democracia de mercado – perdendo de vista possíveis grandes transformações estruturais da sociedade. Permaneceu majoritariamente materialista, porém, abraçou o irracionalismo filosófico em sua versão pós-moderna e se livrou de qualquer noção de universalidade fraterna, renunciando também a uma possível crítica profunda às causas das misérias materiais e morais que ora presenciamos. Chegamos a um momento decisivo, portanto: momento em que esquerda e direita se esgotaram. Momento em que a filosofia europeia racionalista, empirista, construtivista ou desconstrutivista confluíram para o impasse trevoso e sem saída em que estamos imersos. Momento este em que a humanidade, conduzida pela hipocrisia materialista de todos os contendores é desmascarada e se vê em frente ao espelho em sua crua verdade.
Pesquisas científicas sólidas que vêm sendo ignoradas e mesmo sabotadas demonstram desde há muito a realidade do corpo bioplasmático, suporte da denominada vida após a morte. O sentido da existência assim se abriria em nova perspectiva, completamente distinta da que vivenciamos até hoje. Rosa de Luxemburgo preconizou nos idos dos anos 1910: socialismo ou barbárie. Hoje temos que ir adiante: transcendência ou barbárie. Desejos de mudança sem a figura viva e o Evangelho de Jesus, sem os ensinamentos profundos, universalistas e sábios do profeta que for, seja do ocidente ou do oriente; desejos de mudança sem qualquer ideia de transcendência, de sagrado, de espiritualidade, de fraternidade ou de pós-existência são mancos, elementos facilmente corrompidos por inúmeros fatores, como bem demonstrou Fiodor Dostoiévski em seus “Os Demônios”. Por outro lado, um cristianismo de verniz ou qualquer outra religiosidade mundial calcada em ritos e alegorias funcionais ao poder temporal, em defesas em abstrato de ordens estabelecidas já estão mais do que desacreditados, e vêm auxiliando na condução da humanidade à sua derrocada, à auto extinção, à célere destruição do planeta. A esquerda, mais do que nunca, precisa se subverter: e esse elemento pode ser encontrado, vejam só, em Jesus Cristo e na espiritualidade do amor acósmico universal, pregada e vivida por ele há séculos, natureza humana soterrada e temida há tanto. A direita também carece de uma auto subversão, deixando de lado a defesa do egoísmo, das posses, das tradições e do apego ao poder em prol de uma libertação de si mesma, que passa por uma honesta e verdadeira compreensão das noções de espírito, de universalidade, de amor ao próximo, de caridade, de perdão. Jesus figura assim como o maior subversivo da história: aquele que, de fato e antecipado em muitos anos pregou e viveu o advento da emancipação humana, de sua realização integral em corpo e alma. E a emancipação não ocorrerá, caso a humanidade não se emancipe do materialismo em suas mais diversas faces.
Dmitri Cerboncini Fernandes
Bacharel em Ciências Sociais, doutor em Sociologia e estágio de pós-doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris. Professor Associado do Departamento de Ciências Sociais do ICH - UFJF.