Espiritualidade desatrelada da religião



Milton Rubens Medran Moreira

 

 3d rendered illustration of a human face design 1                     Quem se debruça sobre a obra de Allan Kardec e for capaz de nela divisar a presença de sementes de futuro, talvez possa sintetizá-la da seguinte forma: é a antevisão de um tempo em que espiritualidade estará definitivamente liberta da religião.

Isso não significa o fim das religiões. Elas sobreviverão enquanto perdurar no ser humano essa visão dicotômica do sagrado e do profano como duas realidades estanques, formando universos distintos e impenetráveis. Por muito tempo, também, ou para todo o sempre, subsistirão as religiões como estruturas de poder para quem teme o sagrado e, como Pascal, prefere apostar no mistério que dele emana e que jamais se compatibiliza com a razão dos homens. É desse mistério insondável e desse sobrenaturalismo tido como incompatível com a condição humana que Kardec pretendeu desvincular a genuína espiritualidade. Sua proposição filosófica dá à espiritualidade a autonomia só perceptível por quem, de fato, reconhece no ser humano a condição essencial de espírito, capaz de lhe definir a origem, propor-lhe como viver e apta a lhe assegurar a sobrevivência, uma vez atravessada a experiência material. 

Esse futuro, sentido e semeado por Kardec, não chega de repente e tampouco se impõe como um novo paradigma que, de uma hora para outra, retira a espiritualidade das religiões, depurando-a dos dogmas, dos ritos, dos paramentos e do magistério exclusivo de seus livros sagrados e corporações sacerdotais. Vai se delineando, pouco a pouco, no horizonte social da humanidade, pela “força das coisas”, como diria Kardec, e, particularmente, pela atitude revolucionária das novas gerações. Estas, e cada vez mais, são formadas por espíritos que aqui aportam já desvinculados das estruturas religiosas às quais, antes, estiveram firmemente ligadas.

Pois são justamente os jovens que, em recente pesquisa da Datafolha, comentada por G1 em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/05/09/jovens-sem-religiao-superam-catolicos-e-evangelicos-em-sp-e-rio.ghtml -,  vêm dar testemunho da clara tendência social no sentido de desatrelar espiritualidade de religião.

A sondagem detém-se particularmente na realidade de dois dos mais politizados Estados brasileiros, Rio e São Paulo, onde os declaradamente “sem religião”, na faixa dos 16 a 24 anos, já somam mais de 30%, índice que supera tanto o universo dos que se declaram católicos, como aquele dos evangélicos, as duas religiões mais importantes do país

Detalhe curioso revelado pela pesquisa é que, diferentemente de sondagens anteriores, o grupo dos “sem religião” não se identifica, tampouco, com o ateísmo ou o agnosticismo: embora não vinculados a qualquer organização ou crença religiosa organizada, eles se declaram crentes em Deus ou em entidades espirituais, mas sem qualquer compromisso de adesão ou filiação a alguma religião. Vai se firmando o conceito de que não ter religião (laicismo) não tem a ver, necessariamente, com materialismo ou negação da dimensão espiritual do ser humano.

Recorde-se, aqui, a importante obra de um grande sociólogo paulista que nos deixou há alguns anos, Flávio Antônio Pierucci (1945/2012). Analisando as tendências de nossa população quanto às suas crenças, Pierucci costumava compará-las a uma prateleira de supermercado onde estariam exibidos os principais itens de fé religiosa que caracterizam as religiões conhecidas. O “consumidor” desse “mercado da fé”, livremente, retiraria os itens que coincidissem com suas concepções particulares e formaria seu sistema de crença. Mesmo frequentando esta ou aquela igreja, ou nenhuma delas, firmava, assim, sua própria concepção de vida.

Essa liberdade intrínseca de escolher em que crer ou não crer se acentua especialmente entre os jovens. A pesquisa, naquela faixa etária, deu conta de que, em São Paulo, 30% dos entrevistados se declararam sem religião, índice superior ao dos evangélicos (27%) e ao dos católicos (24%). Já no Rio de Janeiro, os sem religião chegam a 34%, enquanto os evangélicos são 32% e os católicos 17%.

A tendência, a se examinar os censos das últimas décadas, vem num crescendo entre todas as faixas etárias e em todo o Brasil. Em 1960, apenas 0,5% da população se declarou aos recenseadores sem religião. Já em 1980, esse índice subiu para 4,8%, aumentando para 7,3% em 2000 e para 8% no censo de 2010. Novo censo ocorrerá este ano e, uma vez mais, se prevê que os dois grupos a apresentarem índices mais expressivos de crescimento serão os evangélicos, de um lado, e os sem religião, de outro. Se aqueles reúnem as tendências conservadoras de parte considerável da população, estes últimos estariam traduzindo a vocação progressista de uma grande parcela populacional descrente em dogmas religiosos, sem mais ânimo a integrar organizações eclesiásticas, mas desperta à busca de uma espiritualidade livre, amparada pela racionalidade e transformadora do indivíduo e da sociedade.

Tudo parece demonstrar que essa caminhada e o estágio superior a que ela poderá levar correspondem exatamente ao projeto delineado por Allan Kardec, em meados do Século 19.

Quem somos

O CPDOC Iniciou suas atividades em 1988, fruto do sonho de jovens espíritas interessados na inserção da crítica coletiva como prática estimuladora ao aperfeiçoamento dos trabalhos.

Acompanhe-nos nas redes sociais