Allan Kardec: filósofo e cientista

 


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QUE ALLAN KARDEC TENHA SIDO alguém com capacidades intelectuais ímpares, não restam dúvidas. Concordem ou não com os seus métodos, acreditem ou não em seus achados, há de se reconhecer que a obra legada por ele – o espiritismo – expressa uma doutrina coerente, cuja consistência em termos lógico, filosófico e científico pode ser atestada por quem quer que tenha se detido em seu estudo. Suas clareza de raciocínio, bagagem cultural e vocação científica transparecem em cada página dos cinco livros compilados e em toda a extensa Revista Espírita, criada e mantida quase que unicamente por seus esforços. Não menos notáveis eram sua humildade, sua firmeza de caráter e seu desprendimento pessoal, nobres valores que talvez não o tenham permitido angariar o merecido reconhecimento terreno enquanto vivia, haja vista estarmos acostumados desde muito antes de a.C. a aclamar egocêntricos, transigentes com o poder e as ordens mundanas e demais arrivistas. O tempo, contudo, senhor da verdade, garantirá de sobejo a Kardec, como garantiu a outros semelhantes, o lugar no panteão de um dos maiores e mais importantes pensadores da história.

Para além da existência ou não de aplausos, no entanto, é claro e notório que Kardec partilha de determinadas virtudes que o aproximam aos grandes descobridores: às manifestações materiais que a qualquer outro careceriam de lógica e sentido, como mesas que giravam, cestos que escreviam, batidas na parede que respondiam a questões, Kardec forneceu-lhes o fio norteador, desvelando assim as decorrências de toda ordem que emanavam desses elos de significação, antes desconexos ou simplesmente repertoriados em meio a eventos folclóricos ou relegados a truques de prestidigitadores. Não obstante, compreender o caráter unitário das psicografias dispersas que lhe caíam às mãos é tarefa não menos admirável; aliás, segundo a visão de um cientista, provavelmente resida justamente nesses pontos, nessas descobertas inusitadas, sua maior contribuição e a mais passível de admiração. Foi assim com Newton e a mítica maçã; foi assim com Marx e as até então triviais mercadorias; foi assim com Darwin e os animais de Galápagos, e daí por diante, com tantos outros desbravadores.

Quem quer que honestamente, sem segundas intenções e com um nível intelectual razoável ganhe um pouco de seu tempo debruçando-se sobre as obras de Kardec logo perceberá as consequências, em todos os âmbitos do saber, que aquelas páginas reúnem em si. A chave para os impasses e aporias sociais, filosóficos, científicos, políticos, espirituais etc. revela-se clara e paulatinamente. Os dilemas que acometem o nosso tempo, como o estilhaçamento da modernidade em esferas próprias de valor, a coisificação humana operada pela lógica da valoração da mercadoria no capitalismo, a pretensa ausência de sentido do mundo e demais sofrimentos e males morais e materiais encontram no legado de Kardec sua potencial solução, o ensejo para a realização do Espírito, na linguagem hegeliana – fator ainda incompreendido por boa parte da humanidade.

Por trás de toda a grandeza impressa à obra de Kardec, no entanto, há a incompreensão generalizada de parte dos próprios adeptos à doutrina de Kardec, os que se declaram seguidores do pedagogo de Lyon, bem como da instituição que se hipostasiou enquanto “casa-máter” do espiritismo brasileiro. Amiúde faltam preparos para se penetrar o universo de desdobramentos interligados e complexos do espiritismo, sobretudo de parte dos que se imaginam os mais gabaritados intelectual e moralmente para tanto. O resultado disso são deificações fanáticas e fantásticas, tanto da personagem do escritor Allan Kardec quanto do conteúdo de seus escritos. Isto sem levar em conta a criação de uma religião erigida em bases que pouco ou nada têm a ver com os propósitos centrais de Kardec, como bem demonstram documentalmente os muito bem vindos livros recém-lançados de Figueiredo e Sampaio (2020) e de Garcia (2020), e os mais antigos, de J. Herculano Pires. Decerto que a documentação hoje disponível, como os inéditos manuscritos de Kardec, arquivados no Centro de Documentação e Obras Raras da Fundação Espírita André Luiz (CDOR-FEAL) e publicados pela Universidade Federal de Juiz de Fora (www.projetokardec.ufjf.br) auxiliarão em muito para futuros trabalhos desmistificarem imagens, fatos e relatos infundados sobre o codificador e seu legado. Uma das causas dessa já secular situação lastimável, que julgamos ser das mais perniciosas, índice da falta de cultura geral que grassa em nosso país, quando não da má intenção deliberada, é a leitura desistoricizada e fora do propósito racional dos livros da denominada codificação, equívoco que se conecta ao deslumbramento fetichista e místico com a personagem de Allan Kardec. Duas faces da mesma moeda.

Proporei aqui uma forma mais lúcida e franca de encararmos o homem Allan Kardec. Em outra oportunidade comentarei certas interpretações equivocadas da obra, embasadas também em irracionalismos de toda ordem. Quais consequências poderiam advir ao situarmos uma personagem histórica e sua obra em seu devido tempo, sem fantasias de qualquer ordem nem crendices como as que enxameiam o meio espírita – por exemplo, a de que Kardec teria sido Elias, João Batista, John Huss e, à frente, Chico Xavier? A nosso ver, uma das principais consequências seria a justa apreensão do espiritismo em suas próprias bases filosóficas fundacionais, quais sejam, as do racionalismo aliado ao empirismo. O espiritismo deve dar ensejo aos seus verdadeiros adeptos a sempre estarem prontos a debater no terreno da filosofia e do saber em geral com todas as demais correntes científicas, filosóficas, religiosas e demais teorias sociais do nosso tempo, não a se fecharem em uma seita de crentes milenaristas ou a se autointitularem novos eleitos da reencarnação. Tal postura, obviamente, exigiria de seus adeptos um sério aprofundamento tanto nas obras de Kardec quanto na cultura em geral, o que posicionaria o espiritismo em seu devido rol: o de farol a iluminar a humanidade conforme a vontade de Kardec, ou seja, pondo à prova a fé face a face à razão. O racionalismo aventado se conecta, destarte, com toda a história da filosofia, concatenando o que antes se encontrava disperso, aparentemente superado ou dividido, tais quais as noções de totalidade, ser e essência, identidade, existência, consciência, aparência, espírito, intencionalidade etc. Ao passo que a empiria, metodologicamente orientada pelas experiências espíritas, anômalas e parapsicológicas, põe à prova as teses levantadas, concedendo ao espiritismo a possibilidade de realmente sintetizar os saberes filosóficos, científicos e espirituais de nossos tempos.

Lembremos ainda que o fundador de tal doutrina, Hypolitte Léon Denizard Rivail, como qualquer outro ser humano, pertencia a uma configuração histórica localizada, qual seja, a França da segunda metade do século XIX. E o que isso implica? Muito: quer dizer que Kardec estava inserido em problemas, soluções de problemas, relações, modos de expressão e uma espécie de mentalidade coletiva que diziam respeito à França da segunda metade do século XIX. Em outras palavras: Kardec, como toda e qualquer personagem histórica, como um homem de carne e osso envolvido por uma densa teia da rede social de seu tempo era datado, como todos somos e sempre seremos. Isto não quer dizer, por outro lado, que as valiosas contribuições contidas em seus livros, conforme defendido logo acima, sejam invalidadas. É preciso ir mais a fundo, o que talvez um pequeno exemplo seja capaz de expressar: para além do pretenso positivismo que, de fato, involucrou algumas de suas contribuições, Kardec foi exitoso ao escapar de muitas camisas de força intelectuais de sua época. Todas as épocas as têm, é verdade, e os nomes que permanecem para a posteridade são geralmente aqueles que, por vezes sem plena consciência, conseguem superá-las. São estas as obras que apontam para um porvir ainda inexistente, fazendo uso das formas expressivas e de demais artifícios de época, como as teorias sociais vigentes, então facultados. Deste modo, reduzir Kardec seja a um mero positivista ou a uma visada historicista radical, como se ele nada tivesse mais a nos dizer, dado que se situava temporalmente no século XIX, é uma visão tão equivocada quanto a anistórica, que o torna uma espécie de santo, visionário incriado ou demiurgo de todos os tempos. 

Fazer vir à tona o homem Kardec, o ser humano dentro de suas limitações, desejos, esperanças, equívocos, acertos, conhecimentos, desconhecimentos, opções etc. é o primeiro passo para trazermos Kardec para o chão de nossa Terra, para ensejar uma interpretação mais alargada do sentido de seu legado e, por que não, do próprio espiritismo. E era, enfim, o que o próprio Kardec queria: demonstrar que o intercâmbio entre humanidade encarnada e desencarnada, logo, da espiritualidade concernente a todos nós não é do âmbito do milagre, da autoridade ou do mistério; antes, que é uma relação pesquisável, demonstrável e que guarda, em termos filosóficos, o sentido de toda a existência terrestre. Seria o primeiro passo, também, para o verdadeiro engrandecimento do próprio Kardec e de sua obra, pois veremos que ele não era um ser paranormal, mas sim um humano como nós, um pesquisador, um cientista dotado de virtudes e defeitos, que logrou por meio de muito empenho, dificuldades e insistência – e às vezes até desânimo, irritação, desistências e resistências – o estabelecimento de sua nobre e ousada produção.

Em suma, fazer de Kardec um ser inefável ou infalível é tirar de nós mesmos a capacidade de caminharmos as trilhas destinadas a cada um de nós. Visualizá-lo como um ser extranormal pode ser muito reconfortante; pois nós, meros mortais, assim nos abstemos de nossas responsabilidades. Enxergar Kardec como alguém igual a nós, por outro lado, nos obriga a reconhecermos o quão ele foi grande com tão poucos recursos e, em contrapartida, como somos pequenos – muitas vezes abastados de condições materiais e intelectuais não passamos de vistosas figueiras. Algo que nossa pequenez prefere disfarçar ao deificar, logo, desumanizar humanos como Kardec. Tenhamos muita gratidão e admiração por seu legado, sem dúvidas; tentemos compreender mais e mais, e de um modo mais alargado, tudo o que foi escrito por ele; tentemos, a cada dia, nos inteirarmos das tradições intelectuais que deram guarida e substrato para que Kardec pudesse ter desenvolvido a sua obra; mas não o elevemos a um pedestal em que ele jamais quis estar. A obra de Kardec é para ser estudada, discutida, debatida e elucidada em termos racionais, históricos, sociais e científicos. Ela deve ser lida e referida ao que temos de mais avançado no conhecimento da atualidade, na perquirição empírica da realidade espiritual entrelaçada dialeticamente à teoria e à vivência prática da fé esclarecida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Figueiredo, Paulo Henrique & Sampaio, Lucas. Nem Céu Nem Inferno - as Leis da Alma Segundo o Espiritismo. São Paulo, Editora FEAL, 2020.

Garcia, Wilson. Ponto final - o reencontro com o espiritismo com Allan Kardec. São Paulo, Editora EME, 2020.


Autor: Dmitri Cerboncini Fernandes

Bacharel em Ciências Sociais, doutor em Sociologia e estágio de pós-doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales - Paris. Professor Associado do Departamento de Ciências Sociais do ICH - UFJF. 

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