UMA OPORTUNIDADE PARA REPENSAR O PAPEL DO ESPIRITISMO - Jornal Abertura 2019

                            Ademar Arthur Chioro dos Reis


Em 2006, o CPDoc promoveu um profícuo debate com o professor titular de Antropologia da Unicamp José Luiz Santos, autor do livro “Espiritismo: uma religião brasileira”, cujas principais ideias registrei aqui na Coluna do CPDoc.  Para ele, o espiritismo conseguiu ocupar um importante espaço na cultura brasileira quando se consolidou enquanto uma religião cristã, assentada na caridade e em uma estrutura religiosa sui generis: uma religião de leigos, estruturada em grupos familiares autônomos e sem a hierarquia tradicional. Atribuiu a inserção cultural do espiritismo na sociedade brasileira, inicialmente, à psicografia e à mediunidade receitista homeopática, efetuada inclusive por médicos espíritas alopatas, como o próprio Bezerra de Menezes.

É inegável, entretanto, que a respeitabilidade social conquistada deve-se sobremaneira ao papel relevante de médiuns como Bartuíra e principalmente Chico Xavier, por meio do qual a psicografia ficou mais conhecida a partir da década de 30. Médiuns que, seguindo as orientações de Allan Kardec, fundador do espiritismo, praticaram a mediunidade de forma desinteressada, gratuita e de boa fé. Os benefícios advindos dos diretos autorais das obras mediúnicas ou das doações materiais voluntárias eram sempre utilizados com transparência na manutenção de obras assistenciais mantidas por instituições filantrópicas espíritas e reconhecidas pela sociedade e pelo poder público.

Essa postura foi fundamental, primeiro como estratégia de enfrentamento da repressão contra os espíritas na Primeira República e no Estado Novo e, após, como meio de legitimação social que perdura até os dias atuais, consolidando o espiritismo como um respeitável movimento social de classe média.

Ainda que um pequeno número de pessoas se declaram espíritas nos Censos, a sua influência na cultura brasileira é imensa. Um exemplo claro disso pode ser observado na difusão de conceitos filosóficos, como a reencarnação, a mediunidade ou a visão que se estabeleceu sobre a vida após a morte, fortemente representada imageticamente pelas colônias espirituais como “Nosso Lar”.

Outra face de contato e produção da imagem societária do espiritismo relevante é a procura por médiuns curadores em praticamente todo o país, que mobilizam enfermos e desenganados brasileiros, suscetíveis às mazelas do nosso sistema de saúde (público e privado), mas também de doentes oriundos de diversos cantos do planeta,

Escândalos sexuais recentes envolvendo médiuns famosos, como João de Deus, que sequer se considera espírita, para além da dimensão ética e criminal que merece nosso repúdio – e o posicionamento da CEPA condenando toda e qualquer forma de violência e o uso abusivo e antiético da mediunidade foi muito corajoso e oportuno – devem ser analisado pela fratura histórica que podem impor na imagem do espiritismo no país e em âmbito internacional.

No momento em que políticos vinculados a setores conservadores, em particular os pentecostais, assumem importantes cargos na República e sem cerimônia e com vasto apoio na mídia controlada por pastores, alardeiam que é chegada a hora de colocar em prática o “projeto da Igreja”, e considerando que sempre tiveram no espiritismo um inimigo declarado, é preciso analisar cuidadosamente o impacto poderão acarretar ao espiritismo a inaceitável usurpação da mediunidade de cura para fins econômicos (enriquecimento de médiuns e suas famílias) e para a deplorável exploração sexual.

É também o momento de repensar o papel da mediunidade de cura. A falta de compreensão sobre a natureza da mediunidade, uma capacidade natural e não um ‘dom moral’, fez com que legiões de seguidores cegamente passassem a legitimar toda a ordem de absurdos, inclusive acobertando situações insustentáveis de violência sexual, demonstrando que perderam totalmente o senso crítico e o juízo moral.

Há os que se perguntam como podem os espíritos permitir que um médium seja um assediador. Imaginam que a moral do médium está relacionada diretamente à capacidade fenomênica, mas isso é um grande equívoco. Se assim fosse, médiuns equilibrados e moralmente desenvolvidos não poderiam servir para comunicações de espíritos obsessores e perturbados.

Vale questionar, também, como é possível que médiuns curadores desempenhem suas atividades, as vezes por décadas, sem que se faça qualquer tipo de avaliação dos resultados do seu trabalho mediúnico? Ou como, em pleno século 21, pode-se aceitar o uso de objetos perfuro-cortantes, ou que se recomende irresponsavelmente a substituição do tratamento convencional?

Os idólatras que se acercam deste tipo de médiuns são pessoas que ainda não compreenderam que a morte é uma contingência da vida e faz parte do processo natural, necessário para a evolução do espírito. Entre estes devem ser incluídos médicos espíritas e suas instituições ditas especializadas, que tem dado sustentação e legitimidade “científica” à situações como esta.

Trata-se de um tema difícil, mas que precisa ser enfrentado. Médiuns são seres humanos, imperfeitos, suscetíveis às mazelas da vida. Falar sobre isso, lidar com esta realidade e assumir uma posição de “tolerância zero” é fundamental. Não se trata de execrar ou condenar ninguém a priori. Todos tem o direito de defesa amplo e irrestrito, mas daí compactuar com qualquer forma de violência nas instituições espíritas é inadmissível.

Isto é triste, ainda mais quando se percebe que o espiritismo foi e deveria continuar a ser um brado contra a ignorância, uma forma racional de enfrentar temas que historicamente foram alijados da órbita da ciência exatamente pelas práticas violentas e pela exploração mística e religiosa.

Ainda que seja tarde, parece-me fundamental compreender que a verdadeira potência do espiritismo está em sua filosofia, ao sustentar a existência do espírito e a imortalidade da alma, a reencarnação e a educação para a morte.  

Quem somos

O CPDOC Iniciou suas atividades em 1988, fruto do sonho de jovens espíritas interessados na inserção da crítica coletiva como prática estimuladora ao aperfeiçoamento dos trabalhos.

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