Religioso ou Religionário? - Abril 2015

Eugenio Lara

Como qualquer iniciador, revelador ou estruturador de determinado modo de pensar e agir, De-nizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, fundou o Espiritismo em 1857, imaginando as vá-rias fases do seu desenvolvimento. Inicialmente, na Revista Espírita (RE), considerou quatro períodos de propagação: Curiosidade,Observação, Admissão e Influência Sobre a Ordem Social (RE, setembro 1858). Posteriormente, ampliou para seis (RE, dezembro 1863), acrescentando os períodos Religioso e Interme-diário, antes da última fase de propagação, renomeada Regeneração Social, a mais importante, segundoele.

Todavia, antes de prosseguirmos, temos de considerar o seguinte fato: há uma diferença substan-cial, verdadeiro abismo filosófico entre considerar o Espiritismo religião, como a grande maioria dos espíritas faz e a postura de Rivail em relação a essa questão. Em nenhum momento ele admitiu que o Espiritismo fosse religião, a não ser no sentido de laço (religion), jamais no sentido de culto (religare ). Posição aparentemente contraditória, evidentemente, com relação a seu procedimento na análise in-terpretativa, hermenêutica dos evangelhos e dos dogmas católicos.

Ou seja, até pouco antes de desencarnar, Rivail considerava O Espírito de Verdade como Jesus, tinha plena convicção de que o Espiritismo era a Terceira Revelação, o Paracleto que estava por vir, anunciado pelo próprio Cristo. Imaginava que o Espiritismo pudesse oferecer um certo tempero ra-cional, experimental, impregnando de bom senso as religiões, no estudo e compreensão de seus dog-mas, como uma espécie de catalisador de ideias, um eficiente cicerone da inevitável aliança da ciência com a religião. Isso sem contar a terminologia contrabandeada do cristianismo, presente no discurso dos Espíritos e do próprio Rivail.

Diante de tal quadro, ver o Espiritismo como um neocristianismo, o cristianismo redivivo, não seria nenhum disparate. A curto prazo, esta seria uma visão ingênua, ideologicamente comprometida e contaminada, em seu nascedouro, pelo cristianismo. A longo prazo, é algo para se pensar no estudo do caráter e da finalidade da Doutrina Espírita. Não foi à-toa que Rivail afirmou que a moral cristã e a espírita são “uma e a mesma coisa”. E também, que “a força do Espiritismo está em sua filosofia”, em sua consistência ético-filosófica, “no apelo que dirige à razão, ao bom senso”. (O Livro dos Espíritos, Conclusão, item VI - FEB).

Não somente por sua postura, mas também pelas consequências sociais que vislumbrou no mo-vimento espírita, notadamente em sua turnê doutrinária por França, Bélgica e Suíça, Rivail concebeu a ideia de que o Espiritismo passaria por um período religioso.


Sem entrar no mérito dessa prospecção “histórica”, pouco dialética e processual, extremamente cartesiana, positivista, meio determinista mesmo, o que se nota é a clareza dele ao imaginar um perío-do religioso na difusão do Espiritismo. É isso que nos interessa.

Entre os estudiosos do tema, durante um bom tempo pairou a dúvida, mesmo conferindo no o-riginal, se Rivail usou a palavra religioso no sentido de culto ou de laço (?!).

Ora, o tal Período Religioso a que Rivail se refere, não é um período de organização, engajamen-to, de articulação, que melhormente, por isso, seria denominado de Período Religionário, mas sim, uma fase religiosa, impregnada de misticismo, dogmatismo e de todas as mazelas típicas de qualquer religião, onde a razão e o bom senso ficam em segundo plano, facilmente descartáveis pelo poder insi-dioso, institucional e teológico da fé cega e irracional.

Rivail sabia disso, tinha plena consciência do impacto de seus livros posteriores à obra fundamen-tal: O Livro dos Espíritos/O Livro dos Médiuns (gêmeos siameses, Lado A/Lado B, uma obra única). Seus artigos na Revista Espírita e os textos póstumos atestam isto.

Imaginou um período intermediário, antes da fase final da propagação espírita, de caráter mais moral e social. E atendeu à demanda social, à ânsia de seu tempo ao buscar correlações entre o Espiri-tismo e o cristianismo, com plena consciência dos efeitos sociais e doutrinários dessa vinculação.

Dos seis períodos vislumbrados por Rivail, os dois últimos superam o antepenúltimo, o chamado Período Religioso. Fosse apenas religionário, tudo bem. Entretanto, sendo religioso, no sentido de culto, podemos considerar as etapas posteriores como uma superação dessa fase.

Trata-se de uma preocupação permanente de Rivail, a de visualizar o processo de propagação do Espiritismo. Na conclusão de O Livro dos Espíritos, ele já imaginava como poderia ser, detalhou isso em outra oportunidade, concebendo quatro etapas até a ideia definitiva, como vimos, de seis períodos de propagação. O Projeto 1868 é a prova evidente de que o futuro do Espiritismo sempre foi o pensamen-to dominante na consciência de seu fundador.

Penso ser oportuno lembrar que o saudoso pensador espírita Jaci Regis (1932-2010) interpretava essa prospecção de Rivail de modo peculiar e original, interessante aliás, ao imaginar aquele Período Intermediário (o quinto), que não tinha nome, como o Período de Espiritização. Já que no período anterior, o Religioso, o Espiritismo havia se descaracterizado. Hoje, talvez, o saudoso Jaci o denomi-naria de Período Pós-Cristão. Eu me contentaria, apenas, com a simples denominação de Período Pós-Religioso.

Eugenio Lara é arquiteto, membro-fundador do CPDoc, editor do site PENSE – Pensamento Social Espírita e autordeBreve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Os artigos desta coluna baseiam-se em estudos e pesquisas desenvolvidos pelo CPDoc: www.cpdocespirita.com.br / Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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